quinta-feira, dezembro 13, 2007

repensando musica

(por Fabinho Silva em www.raizdumaterraseca.blogspot.com)


No princípio, criou Deus os céus e a terra. E, segundo alguns, criou cantando. Embora isso não esteja escrito explicitamente na Bíblia, eu acredito nisso. Crença minha, do CS Lewis, do JR Tolkien, e dum lote d'outros que inspiraram esses dois pensadores-romancistas.
Faz sentido. A música é tão importante, mas tão importante, que deve ter sido criada antes mesmo da criação, antes da terra ser habitada por homens e mulheres. E deve ser por isso que tanta gente que mexe com música na igreja se ache assim, digamos, tão divina. Porque, afinal de contas, a música se tornou a coisa mais importante nas igrejas de crente.

Mas - que surpresa - a música, tão divina, não é privilégio dos crentes, e todo mundo, em todos os países, raças, tribos, povos, línguas, religiões... Todo mundo tem alguma coisa com música de alguma forma. Alguns usam a música para rituais religiosos, outros para puro entretenimento.
Se veio daí a invenção da distinção entre "música do mundo" e "música de Deus" - a saber, música de Deus é a que se performa nas igrejas de crente, e música do mundo é tudo o que não se toca nas igrejas de crente - não sei. Mas isso se tornou a regra.

Se a música que toca nas igrejas é de Deus, então ela tem que ter um tratamento especial. E as pessoas que trabalham com música na igreja, são também pessoas especiais. São mais divinas que as outras. No templo de Israel havia os levitas, que eram os caras, os especiais. Hoje, nos templos crentes, também temos levitas. A função dos levitas crentes é fazer o melhor para o Senhor, levando a igreja ao mais perto possível da adoração perfeita através da música. Todo levita que se preze tem convicção que sem seu trabalho a igreja não poderá agradar o coração de Deus.
Isso não foi sempre assim tão claro na história da igreja, mas é porque a igreja não havia evoluído ainda e não tínhamos assim tanta facilidade de ter instrumentos e microfones e equipagem de som de última geração. Os pobres crentes do passado ainda não tinham tido a visão do fazer o melhor pro Senhor, e nem poderiam, pois ainda não havia microfones Shure. A bem da verdade, sempre tivemos crentes que quiseram trabalhar na igreja, a qualquer custo, mas naqueles tempos a música era só mais uma opção. Ah, mas nos tempos da nova visão de fazer o melhor pro Senhor, a primeira opção é fazer parte do ministério de música, pois é aí que reside o mistério da divindade.

Como os corais andam caindo em desuso, e o número de microfones e plugs de entrada de instrumentos disponíveis ainda é limitado, já viu, né? Briga de foice pra conseguir uma vaga entre os levitas, com mortos e feridos. E briga de foice pra manter os levitas unidos: sempre tem um mais divino que o outro, e pra manter a concorrência interna em níveis aceitáveis, só modernas táticas de gerenciamento de equipes pra dar conta.

No lado de lá, sentados ou em pé, está a congregação, o corpo de Cristo, os irmãozinhos da igreja, que precisam de ajuda e direção para adorarem ao Senhor. Tem uns três tipos de crentes que estão lá: o primeiro acredita que os levitas lá em cima são os caras, divinos mesmo, ungidos do Senhor, e sem eles seria impossível acontecer adoração. O segundo não acredita nem desacredita, acha tudo bonitinho, e prefere não pensar a respeito. O terceiro morre de inveja que não é levita, e torce pra que arrebente a porcaria da corda da guitarra e que uma mosca entre na boca daquela cantora que se acha. Ah, tem outro tipo ainda, que acha uma bobagem enorme esse negócio de "música do mundo" e "música de Deus", mas esses provavelmente nem crentes são.

Outro dia perguntei pra uma pessoa desse grupo adicional, o que ela achava dessa discussão toda. Segundo essa pessoa, tudo o que o público (foi assim que ela chamou a congregação que senta ou levanta pra ouvir música na igreja) quer, os artistas (como ela chamou os levitas) buscam fazer. Numa frase: "Os levitas de hoje fornecem entretenimento travestido de louvor e adoração pra um público que finge não estar se entretendo atrás de uma aparência de espiritualidade - o que normalmente redunda em música e vida de má qualidade."

Meu...

Biblicamente falando, música faz parte do culto, sem dúvida nenhuma. O que fazer, então, pra que não haja fingimentos nos cultos?
Eu sei lá.

Talvez repensar o que está sendo feito, pensar um pouco diferente... Pensar é bom.

- deixar de dar tanta importância assim pra música nos cultos seria um bom começo... Quem sabe eliminando os grupos que detêm poder musical e transferindo poder de decisão para a congregação. Como se fora uma roda de viola, como se fazia antigamente nos cultos domésticos: quem toca, carrega seu próprio instrumento, ninguém dirige, todo mundo canta e toca junto. Sem ensaiar mesmo. Sem amplificadores ou dez pessoas ao microfone dirigindo outras dez. Nem dá pra ouvir a congregação cantando... Menos importância pra música, menos gente se matando pra fazer parte da trupe dos levitas.
- a música nos cultos deveria ser uma coisa harmônica... Momento de cânticos levíticos sem conexão com o andamento do culto é muito comum... Aliás, liturgia não é palavrão nem nome de doença grave. Não fica estranho quando se começa um culto com um típico hino tradicional de adoração ("Ao Deus de Abraão Louvai"), e 20 minutos e mais dois hinos e um solo e um hino pelo coral e confissão de pecados e leitura de salmos depois alguém anuncia que vai começar o momento de adoração? "Vamos todos juntos adorar ao Senhor agora", convida o levita...
- se a música for encarada como sendo aquilo que ela é (uma manifestação cultural, uma expressão artística concebida por seres humanos), vai facilitar muito o fim desse fingimento de adoração que às vezes acontece. A dicotomia música de igreja versus música do mundo não contribui pra nada, por que as únicas músicas que foram mesmo inspiradas por Deus estão gravadas na Bíblia (ex: os Salmos). O resto, pura manifestação cultural humana. As músicas dos grandes e bem-sucedidos ministérios de adoração que existem é tão divina quanto Chico Buarque.
- As congregações precisam ser estimuladas a pensar mais do que sentir. Esse é o caminho inverso do apregoado pelos mega-ministérios de louvor que dominam rádios e vendas de CDs.
- Nem todo médico é médico só da igreja, e nem todo professor é professor só na igreja. Em conseqüência, nem todo músico precisa ser músico só pra igreja. É maldade acusar um músico de não trabalhar pra Deus se ele não se interessa por fazer parte da banda dos levitas A ou B. Vai que ele faz alguma outra coisa e você não sabe.

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