quinta-feira, junho 25, 2009

decifra-me ou te devoro


Lundu do escritor difícil

Mário de Andrade



Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.


Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.


Misturo tudo num saco,
Mas gaúcho maranhense
Que pára no Mato Grosso,
Bate este angu de caroço
Ver sopa de caruru;
A vida é mesmo um buraco,
Bobo é quem não é tatu!


Eu sou um escritor difícil,
Porém culpa de quem é!...
Todo difícil é fácil,
Abasta a gente saber.
Bajé, pixé, chué, ôh "xavié"
De tão fácil virou fóssil,
O difícil é aprender!


Virtude de urubutinga
De enxergar tudo de longe!
Não carece vestir tanga
Pra penetrar meu caçanje!
Você sabe o francês "singe"
Mas não sabe o que é guariba?
— Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.

quarta-feira, junho 17, 2009

desapego


(Gladir Cabral)

Estender a esteira,
Sacudir a poeira,
Desatar as sandálias dos pés,
Entregar a moeda da mão
E o tesouro do seu coração.
Ir além da porteira
E cruzar a fronteira,
Não voltar mais os olhos pra trás,
Ignorar as estátuas e os sais
E os navios ancorados nos cais.

É preciso recusar,
É preciso esquecer,
É preciso não se apegar,
Porque tudo o que temos
Não é nada que somos,
Vida, vento, tempo, voz e chão.

Possuir as estrelas,
Dominar as alturas,
Ter a posse das constelações,
Já não creio em tais ilusões,
Quero gente, fogueira e canções,
Uma vida mais simples,
De alegrias constantes
E de amores intensos e sãos,
De desejos sinceros e bons,
Como um quadro de múltiplos tons.

terça-feira, junho 16, 2009

festança

Na roda, à fogueira
Viola canta, peão descansa.
Apeou há pouco e já olha o manto negro
que esconde a clareira,
na mata que dorme, silente e mansa.

Atrás de si a porteira
Relembra galopes, canções e xodós,
Juras que ficaram no caminho ataiado.
Teceu um fio de saudade doída e certeira
Aquela faísca lampeira que sobrou
do velho luzeiro empoeirado.

Mas essa é a noite de festa na fazenda.
A boiada chegou cumprindo mais uma lida.
As mulheres que em cantoria na tenda,
Ao redor do fogo estalado,
Com fitas e farda florida,
vão e vem no valsar programado
devolvem ao céu alegria incontida,
declamam um verso pra Deus,
numa reza agradecida.


(08.06.09)

segunda-feira, junho 08, 2009

mistério

Jorge Camargo

Quem tem todos os nomes
E ao mesmo tempo nome algum
Que em tudo põe limites
E cujo limite é nenhum

Quem vai além da oposição
Entre o que tem e não tem fim
Que sai em direção a tudo
E permanece em seu jardim

Tentar saber seu nome
É navegar na imensidão
Do mar que está dentro de si
É mergulhar no coração

E ao mesmo tempo se deixar
Sair além do próprio eu
Render-se por inteiro àquele
Que a alma insiste em chamar Deus

Acima de todo o saber
De todo o crer toda a razão
Além de toda a compreensão

De todo o esforço sério
De toda a investigação:
Eis que habita em nós…
Eis que habita em nós…
Mistério!